Palavra de Cronista

A garrafa

26/08/2019

Morei alguns anos com meus avós, ainda criança, numa cidadezinha pacata do interior do Ceará, cheia de belezuras verdes e gente de sorrisos largos.

Talvez seja possível trançar os fios da lembrança e fazer um belo bordado permanente de boas recordações. O fio passa por baixo do pano, conto os espaços e permito-me transbordar em emoções. Bordo preferencialmente em ponto-cruz, como forma de cruzar as lembranças com os pensamentos saudosistas.

O que eu sou

25/07/2019

Na primeira vez que me apresentei como escritora, lembrei de como me senti quando li meu primeiro livro, há 15 anos. Pareceu mágica. Enquanto tamborilava os dedos pelas lombadas dos livros velhinhos da biblioteca, um especial caiu da estante e bem na minha cabeça.

Pela mão de sua mãe, mãe de outra três crianças - duas mais velhas, uma ainda bebê -, Débora foi levada para trabalhar em casa "de família". Tinha oito anos, cabelos castanhos, seios ainda despontando na camisa de malha sem sutiã. Levaram-na ao quartinho onde, sozinha, dormiria todas as noites que intervalavam dias intensos, de lavar, passar,...

O que guarda daquele tempo é um queimor. Não medido em grau Celsius. Mas em dor. O que guarda daquele tempo é a dor. Não sabia que podia ser tão intensa. Sem remédio ou cuidados paliativos. Não havia cura. Para a causa da dor. E nem para ela mesma, a dor.

"Minha Amélia (...) Antes de tudo quero dizer-te que te amo, agora mais do que nunca, que não me sais um minuto do pensamento, que és minha preocupação eterna, que vivo louco de saudade, (...) Não me agradou ver um soneto teu (...) desagradou-me a sua publicação. Previ logo que andava naquilo o dedo do Bernardo ou do Alberto. Tu,...

Às vezes o poema me acorda, às vezes é a minha bebê ou o meu filho mais velho. Mas, quase sempre, o cansaço me deixa dormir solenemente. Se me perguntam como eu escrevo sendo mãe de duas crianças, eu respondo: o bloco de notas do celular me ajuda. Eu amamento e anoto as ideias no bloco; eu varro a...

O Pombo

19/06/2019

Nunca fui amiga de pombos. Aliás, sempre tive uma vontade titânica de chutá-los. Óbvio que nunca o fiz, pois, o meu instinto é controlado pela minha razão, pelo menos no que se refere aos pombos!

Caritó

12/06/2019

Esses dias lembrei da mãe de uma amiga com quem dividi bons momentos na adolescência. Éramos um grupo de seis meninas sobrevivendo a essa selva chamada ensino médio - e mais preocupadas com o tamanho dos seios e a chapinha do que com as notas, ou qualquer outra coisa, confesso.

A Surpresa

05/06/2019

Chegou o mês de junho. Pegou-me de surpresa. Aqui, na cidade grande, os meses, mesmo aqueles que guardam festas, alegrias, comemorações, podem chegar sem fazer alarde. Os dias especiais se diluem - entre correrias, pressas, tropeços, obrigações de toda ordem.

(Entre)vistas

01/06/2019

Dia desses fui chamada a uma entrevista de emprego em uma instituição de ensino. Por uma semana, a valsa conhecida seguiu: ligações, títulos, conversas, papéis. Fui chamada, por fim, à entrevista final e deparei-me com um homem de meia idade em um cubículo ligeiramente maior do que os que eu visitara anteriormente.

[Sem Título]

26/05/2019

Se eu pudesse escrever uma carta pra mim, acho que seria mais ou menos assim:

Há muito custo, venho entendendo que sou corpo. O leitor pode achar-me um tanto maluca, mas vejo-me esmagada pelo desentendimento entre pensamento e corpo mais vezes do que gostaria. Geralmente, imagino que tudo há de se concluir no compasso da ideia, no tempo do pensamento. Sou cascata de artifício , espalho-me por superfícies e vejo a ideia...

A dor do parto

12/05/2019

Alguém chamou de parto natural. Certamente alguém que não pariu. Ou alguém que pariu, mas já esqueceu como dói parir. Para não esquecer ou mandar para a puta que pariu todos aqueles que disseram "calma, Lara!", escrevo. Assim, celebro a dor de um novo parto. Natural o escambau! Expelir cada uma dessas palavras, até chegar à quinquagésima, me custa...

Escrever estórias tem feito de mim uma observante de minha ignorância. Mas a revelação tem sido tão absolutamente incontestável que eu me amedronto, encolho, e busco ficar escondida mascarando a fome. Se há fome, por que não buscar comida? O problema é que primeiro eu preciso aprender a reconhecer comida que me satisfaça, como um bebê...

Era um mar bonito que o vento esparramava em camadas pela areia colorida da praia. Quase ninguém caminhava por ali e o lugar tinha a tranquilidade gostosa de um lugar vazio. O sol era ameno e a tarde, madura. Os fragmentos de búzios aguilhoavam os passos, mas era um comichão afável. Eu vinha entretida com alguns pensamentos, mas...

Houve o tempo em que correr. Debater-me. Atravessar distâncias em curto espaço de tempo. Fez sentido. Assinei a Lei do menor esforço. Porque mesmo ele, o menor, agiganta-se. Domina. Me. Mina. Não quero. Marcar café. Almoço. Não quero estar no trânsito. Nem ter anotações na agenda. Não quero frequentar. Nem ser frequentada. Pequenos fatos/fardos...

Mirar você e receber esta fala silenciosa: "eu não caibo em seu olhar". Impossível saber o que se passa dentro e, ainda assim, me vejo acolhida pelo sorriso banguela da minha bebê de seis meses. "Eu não caibo em seu olhar". Ela tem razão. Mesmo sem ter dito isso, meu olhar não atravessa a sua imensidão. Amanhecemos juntas todos...

Não foi tarefa fácil entender que eu era três pessoas. Esta fatídica descoberta aconteceu em um encontro para o qual eu pouco estava preparada. O leitor já percebeu que os encontros mais significativos são metade assombro, metade improviso e metade - sim , três metades - desassossego ? É estar no silêncio do mato , embrulhado em céu sem...

Primeira Vez

07/03/2019

Minha primeira e única filha completou sete meses agora no início de março e, desde que ela nasceu, tenho a impressão de viver uma vida inteirinha a cada dia. De repente, sem que nos déssemos conta, a Luiza começou a bater palmas, engatinhar, escalar objetos e pessoas, sacudir os braços quando quer colo... enfim, novidades que nos fazem...

Olhar

23/02/2019

Era um olhar que contemplava ,impávido, o que sabia e o que suspeitava. Seria pouco acurado afirmar que este desnudava ou trespassava o que fitava, porque era olhar genuíno de animal que , ignorante de normas e pudores, observava o que interessava. Não era mirada que pedia ou implorava. Não era olhar que dizia ou declarava, mas olhar em...

O Galo

05/01/2019

Galo, galo
De alarmante crista, guerreiro,
Medieval.(...)
Saberá que, no centro
De seu corpo, um grito
Se elabora?

Sua fama cresceu. Os cadeados colados iam somando-se em lugares distintos, entre bairros e avenidas: Messejana, Lagoa Redonda, Jangurussu, José Walter, Mondubim e Av. Washington Soares, Av. Presidente Costa e Silva, Av. Perimetral.

João sem Deus

15/12/2018

O leitor me perdoe o trocadilho infame da crônica da semana, mas é justamente sobre o show de horrores do médium que escrevo. Mais que isso, essa semana foi uma espécie de boneca russa - dentro de uma boneca há outra boneca e mais outra e ainda outra - da misoginia. A semana começou com o desenrolar do...

O outro e eu

24/11/2018

Compreender o outro é considerar a sua singularidade; é concentrar-se no diálogo interior que se apresenta, e ocupar-se mais com a investigação da sua interioridade; é entendê-lo como livre e autoconsciente e, vivenciá-lo como pessoa que apresenta um modo único de ser e de realizar a sua performática no mundo.

Os olhos marejaram. O peso de todas as cobranças caiu justo sobre as glândulas lacrimais. Antes, sentira a alma ganhar toneladas. O que veio primeiro foi a sensação de arrastar bolas de aço presas a grossas correntes.

Imagino Drummond, com um singelo sorriso, indagando: "que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?" Seguindo a lógica do poeta, indago ao leitor: que pode o cronista, senão, sobre seu tempo, escrever? Em outubro, passava-se política no pão, despejava-se política no copo. O leitor, então, me perdoe, mas a crônica é política . Na verdade, até...

Passagem marcada. Vou visitar Belém. Cidade em que nasci. Em que cresci tanto na verticalidade quanto na horizontalidade do corpo e da alma. Cidade que deixei há 28 anos. Isso significa que vivi mais da metade de minha vida fora de suas bordas. Mas os 23 anos em que Belém fora o meu lugar de comer, dormir, acordar,...

Faz alguns anos que acompanho a luta das mulheres na política, através de vários debates públicos regionais e nacionais. Desde então, percebi que dentre algumas mulheres que alcançam o congresso nacional, ainda há um número muito reduzido de manas que, realmente, tem o comprometimento legítimo com a nossa pauta raiz, em relação ao número absoluto...

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